MNE estuda “solução excecional” para ‘barrigas de aluguer’ 

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MNE estuda “solução excecional” para ‘barrigas de aluguer’
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MNE estuda “solução excecional” para ‘barrigas de aluguer’

 

Raquel Vieira, da Comissão de Família e Menores da JALP, explica, na edição desta semana do Expresso, o quadro legal da gestações de substituição e as conseqüências “solução excecional” para ‘barrigas de aluguer’ anunciada pelo MNE.

 

 

MNE estuda “solução excecional” para ‘barrigas de aluguer’

 

A decisão foi tomada em poucas horas. Estavam sentados no sofá da sala, em casa, quando perceberam que tinham de partir para a Roménia ainda naquela noite. Eram 6h da manhã do dia 2 de março quando Maria e João (nomes fictícios) entraram num avião, em Lisboa, com destino a Bucareste, capital do país. Dali seguiram de carro até à fronteira com a Moldávia. Depois de a atravessarem, a cerca de dois quilómetros, junto a uma bomba de gasolina, eram esperados pela mulher ucraniana com quem tinham combinado encontrar-se. Estava com os dois filhos e o namorado e trazia na barriga a filha do casal português. Reunidos, partiram para a capital romena, onde ainda se encontram. Embora “gerindo tudo quase ao minuto” e “sob uma tensão inacreditável”, dizem que correu “tudo bem”, mas os obstáculos não terminaram.

Querem trazer a mulher para Portugal, mas o contrato que assinaram com a agência ucraniana para a gestação de substituição — vulgo ‘barriga de aluguer’ — não é válido nem legal no nosso país, o que significa que se a crian­ça nascer em território nacional será considerada mãe a gestante ucraniana, apesar de não ter qualquer ligação genética com o bebé — nem o desejar —, e só o cidadão português será reconhecido como pai. Na Ucrânia, a parturiente renuncia ao bebé logo após o nascimento, e a criança é registada na embaixada de Portugal, em Kiev, como filha de pai e mãe portugueses.

“Temos noção de que o quadro legal não nos favorece, mas queremos levar a gestante para Portugal”, diz João

O Expresso sabe que o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) está a estudar uma “solução excecio­nal” para salvaguardar casos semelhantes a este, em que as gestantes estão dispostas a vir para Portugal — a maioria encontra-se na Ucrânia com as famílias. Enquanto isso não acontece, Maria e João vão esperar no hotel. Já chega de riscos. “Temos noção de que o quadro legal não nos favorece neste momento. Não sabemos o que vai ser possível fazer, mas queremos levar a gestante e a nossa filha para Portugal”, diz João. O parto está marcado para daqui a menos de um mês.

Este é um dos 15 casais com processos de gestação de substituição na Ucrânia que, desde a invasão pela Rússia, pediram ajuda ao Governo, nomeadamente para resgatar e registar bebés acabados de nascer, como foi o caso de quatro gémeos. Ao Expresso, o MNE garante que estes casais “estão a ser acompanhados pelos serviços consulares”, estando a ser “consolidada com o Instituto dos Registos e Notariado uma solução que, a breve trecho, permita concretizar a vinda das crianças para Portugal”.

Além destes casais — todos heterossexuais e casados, como exige a lei ucraniana —, há pelo menos mais 10 ou 15 que ainda não contactaram as autoridades nacionais, porque já garantiram a segurança das gestantes ou porque a gravidez é recente e têm esperança de que a guerra termine muito antes do nascimento dos filhos. Habituados ao tabu do tema, o silêncio ainda é a primeira solução.

O SONHO NO MEIO DA GUERRA

Há um casal de músicos do Algarve que descansa dentro de uma imensa preocupação por saber que o futuro primeiro rebento está a crescer bem na Polónia. A gestante está grávida desde dezembro. Outro casal da Grande Lisboa conseguiu finalmente retirar do meio da guerra o futuro filho, já com seis meses e meio de gravidez, de algures entre Odessa e o interior do país. Saiu a jovem ucraniana mais a família de oito pessoas. Não muito longe cresce a filha de Soraia, com 20 semanas, e ela em Vila Nova de Gaia, impotente, frustrada, sem saber sequer se a gestante quer abandonar o país. A decisão é dela, tem de a respeitar. Sónia, de 50 anos, também percebe que a sua gestante, grávida de 20 semanas, a viver numa aldeia perto de Jitomir, já atingida pela guerra, não queira partir. Mas tem medo: “A qualquer momento entra alguém ali e mata toda a gente. Ainda na quarta-feira ela disse-me que ouviu rockets a passar.”

E há casais que estavam no início do processo, ainda sem embrião mas com o material genético recolhido. Como um casal do Porto que, à quarta e última tentativa, conseguiu retirar dois óvulos. A inseminação seria por estes dias. Agora só esperam que sejam reais as fotos que o médico pôs nas redes sociais a proteger os inúmeros recipientes de criopreservação numa espécie de bunker em Kiev.

OS MEANDROS DA LEI

Portugal tem uma lei de gestação de substituição desde dezembro do ano passado, mas ainda não foi regulamentada e não pode ser aplicada a estes casos, explica Rafael Vale e Reis, docente na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e autor de uma tese de doutoramento sobre o tema. “O nosso sistema é muito avesso à gestação de substituição quando não são cumpridas determinadas regras, podendo estar em causa a prática de crimes.” Em Portugal, é proibido qualquer tipo de pagamento à gestante, ao contrário da Ucrânia, onde este serviço é pago e a gestante não tem qualquer ligação biológica à criança. Aliás, o contacto entre casais e ‘barrigas’ não existe — só porque eclodiu uma guerra é que as agências forneceram aos pais a identidade e o contacto das mulheres ucranianas.

Coloca-se também a questão do reconhecimento dos casais que recorreram à gestação de substituição como pais. “Os contratos foram feitos numa altura em que havia um vazio legal em Portugal. São inválidos à luz da lei portuguesa”, explica Raquel Vieira, membro da Comissão de Menores da Associação Internacional de Jovens Advogados de Língua Portuguesa e doutoranda nesta área. Uma possibilidade seria os casais tentarem, por via judicial, que os contratos fossem reconhecidos e que as crianças fossem registadas em nome deles — ação cujo sucesso poderá depender da existência de um vínculo biológico de ambos à criança, considerando a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

Também há a possibilidade de a gestante “renunciar às suas responsabilidades parentais” e a criança “ser entregue para adoção” — sendo os casais portugueses “sinalizados antecipadamente como família de acolhimento” — ou, ao abrigo de um regime de exceção, ser “reconsiderada a validade dos contratos feitos na Ucrânia, atendendo a que já existe gestação de substituição em Portugal e à situação de guerra” no leste da Europa, explica Raquel Vieira. Mas esta última opção tem riscos, avisa: “Criaria desigualdades, uma vez que permitiria a casais que contrataram ‘barrigas de aluguer’ lá fora a preço de ouro obter o resultado que outros casais portugueses desejariam e não podem ter neste momento.”

 

Expresso, 11 de Março de 2022