Sob o lema «A voz das vítimas lidera o caminho» assinala-se a 30 de julho o Dia Mundial contra o Tráfico de Pessoas (Resolução 68/192, da Assembleia Geral da ONU de 18/12/2013) cuja celebração anual visa afirmar a necessidade de pôr termo à exploração humana e ajudar quem foi vítima a reconstruir a sua vida.
O tráfico de seres humanos (TSH) constitui uma grave violação dos Direitos Humanos. Direitos fundamentais como a liberdade, a dignidade e a igualdade amplamente consagrados nos mais diversos instrumentos jurídicos de que destacamos a Declaração Universal dos Direitos Humanos; a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a Carta dos Direitos Fundamentais da UE, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, a Convenção de Palermo, entre outros.
Os estudos e relatórios realizados anualmente, por entidades especializadas, dizem-nos que são milhões de pessoas traficadas em todo o mundo, estando este crime conexo a realidades associadas e paralelas à pobreza, quebra de suporte familiar e comunitário, assimetrias endémicas entre os países mais desenvolvidos e os mais carenciados, falta de oportunidades, discriminação e violência de género, reduzidos níveis de educação, corrupção e conflitos armados a nível mundial.
Globalmente 1 em cada 3 vítimas de TSH é uma criança, as mais recentes estatísticas revelam que na União Europeia um quarto das vítimas são crianças e nos países mais pobres esta proporção sobe para metade. Anualmente são traficadas mais de um milhão de pessoas e estima-se que atualmente haja 40,3 milhões de vítimas (ainda não salvas).
Pessoas em trânsito, refugiados, migrantes encontram-se mais expostos e vulneráveis ao TSH, dentre estes as mulheres, as raparigas e as crianças são especialmente mais vulneráveis. O risco de vulnerabilidade elevado reveste diversas formas, como a exploração sexual, laboral, o tráfico de órgãos, a mendicidade, as adoções ilegais e a exploração de atividades ilegais.
Porque o TSH não conhece fronteiras , porque é perpetrado (também) através de redes internacionais mais ou menos sofisticadas, a sua prevenção, referenciação e libertação de vítimas e a sua recuperação, bem como, o combate ao crime, a perseguição dos agentes, desmantelamento de redes e efetiva apresentação à justiça e punição dos traficantes, determina, para que possa ser eficaz, que exista um léxico comum facilitador da partilha de informação e cooperação interinstitucional e internacional, bem como a utilização de instrumentos comuns.
Daí a dupla importância recentemente alcançada sob a égide da Presidência Portuguesa da UE: A nova Estratégia Europeia para o Combate ao Tráfico de Seres Humanos (2021-2025) e em Portugal o Sistema de Referenciação Nacional de crianças (presumíveis) vítimas de tráfico de seres humanos - protocolo para a definição de procedimentos de atuação destinado à prevenção, deteção e protecção.
Assinalar o dia 30 de Julho, é reforçar a necessidade mundial de comprometimento com a dignidade da pessoa. Estados, organizações de Estados, legisladores, ONG’s, indivíduos, todos convocados para o cumprimento da obrigação de prevenir e combater o crime, libertar quem ao mesmo é sujeito, perseguindo os seus agentes, destruindo as redes criminosas, levando à justiça e punindo os agressores. Todas as pessoas exortadas à protecção, restauração da vida de quem foi alvo de um crime hediondo, dando-lhe um futuro, o seu futuro.
Porque as redes e os traficantes se aperfeiçoam, porque não há um perfil unívoco de traficante ou de vítima, os relatos dos sobreviventes são essenciais para perceber o momento crucial de vulnerabilidade, o modo de execução do crime, o momento em que podia ter sido evitado, as vivências enquanto o crime perdura, os sinais que podem ser alertas para identificar uma vítima ou traficante, as falhas de sinalização de vítimas por pessoas que consigo se tenham cruzado, a possibilidade da sua libertação, as necessidades de protecção e as necessidades dos sobreviventes para o seu empoderamento e para viverem uma nova vida.
Legisladores, definidores de políticas de prevenção e combate ao crime de TSH, ONG’S envolvidas no apoio aos sobreviventes, autoridades fiscalizadoras e polícias, perpetuam muitas vezes a vitimização ou revitimização dos sobreviventes do crime, pelo simples facto de não ouvirem as vítimas na definição de políticas e modos de atuação.
Em 2009, perante a Assembleia Geral da ONU, os sobreviventes já clamavam We were trafficked. Hear our voice. A este propósito o Anti-Trafficking Monitoring Group (ATMG) no Reino Unido, inserido na Anti-Slavery International, desenvolveu o projecto Agents for Change – grupo de trabalho com sobreviventes de TSH e que parte da sua narrativa, histórias e vivência, para o desenvolvimento de novas chaves que devem influenciar políticas anti-tráfico de pessoas, com melhores resultados ao nível da prevenção, protecção das vítimas e combate à impunidade dos traficantes.
Na sua própria voz, os sobreviventes são Agentes de Mudança: identificam novas nuances do crime, vulnerabilidades que permitiram o seu tráfico, sinais de alerta ou de identificação de possíveis vítimas, formas de protecção e necessidades das mesmas na construção de uma vida pós TSH.
Ainda que a ONU tenha escolhido (em 2021) o lema Victims Voices Lead the Way certo é que, podemos questionar se de facto as ouviram. Mas aplaudimos a colocação da tónica nos sobreviventes e pessoas que vivenciaram o TSH no centro da estratégia de erradicação deste crime hediondo. Para que mais nenhuma voz se cale perante a agressão máxima da agressão à dignidade da pessoa.
Autoras: Andreia Delgadinho e Maria L. Duarte I Comissão de Direitos Humanos da JALP