Os direitos humanos não são usucapidos e não prescrevem 

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Os direitos humanos não são usucapidos e não prescrevem
ARTIGOS DE OPINIÃO

Os direitos humanos não são usucapidos e não prescrevem

O mundo mudou depois do 11 de Setembro de 2001. Acordou para o horror do terrorismo na nação mais poderosa do mundo e abraçou a sua luta, a vingança do ataque perpetrado no coração dos EUA, num dos seus símbolos icónicos, abraçou a causa de evitar que se repetisse uma tragédia que ceifou milhares de vidas. Esta luta não foi lançada só em nome dos americanos, ou do estilo de vida ocidental, foi embrulhada na defesa dos direitos humanos de povos inteiros e minorias oprimidas.

 

O mundo mudou, mas depostos os Talibã que impunham um estado radical religioso e acolhiam os inimigos da liberdade ocidental (como a Al Qaeda), a comunidade internacional acordou para um outro terror, o terror semeado pelo Daesh, com decapitações de jornalistas transmitidas em directo, decapitações colectivas com uma frieza inumana e transmissão de assassinato de pessoas queimadas vivas e conscientes. Terror transmitido para que o víssemos enquanto os familiares das vítimas também tinham de o ver.

 

Os relatos deste terror foram chegando. O comum mortal, que não tem qualquer contacto com serviços secretos ou fontes bem colocadas ía sabendo que os Talibã estavam acantonados em países vizinhos, acolhidos pelos mesmos países onde células da Al Qaeda e do Daesh persistem.

 

Ninguém perguntou aos jovens americanos se queriam passar os próximos 20 anos a voar para o Afganistão em missão, tal como ninguém perguntou aos jovens dos demais países da NATO se queriam que estas missões durassem 20 anos, e ninguém perguntou aos civis.

 

Trump decidiu que chegara a hora, que era infrutífero continuar a apoiar a estruturação de um estado Afegão (ocidentalizado) e o treino de militares. Vários chefes militares de topo vieram alertar para o erro e o perigo, Biden manteve o calendário.

 

Os Talibã avançaram no território vertiginosamente e por fim tomaram totalmente o poder, sem eleições, sem transição, com um assalto – que as consciências ocidentais afirmam não ter sido sem cenário de guerra em kabul e muitas outras províncias.

 

O Presidente afegão fugiu, o pessoal das embaixadas está a ser retirado. Os tradutores e colaboradores civis do governo afegão e das forças americanas e das NATO sabem que poucos se salvarão, não há tempo para todos, ainda que tenha havido 6 meses para emitir os vistos e tudo tenha falhado. Houve veteranos soldados americanos a apelar, durante meses, a Biden, para que iniciasse a retirada destes civis, para que emitisse vistos urgentes. Os soldados são fiéis ao lema de que ninguém fica para trás, são eles mais uma vez que terão de lutar com o stress pós traumático de saber que os que fizeram parte da sua vida durante meses ou anos, não foram salvos.

 

Uma tragédia humanitária está a acontecer. São muitos os relatos, ainda que não de Cabul, de pessoas marcadas (literalmente marcadas) para sofrer o terror físico, publico, colectivo e ultrajante, que era imagem dos Talibã há 20 anos e que regressou.

 

A consciência ocidental já tem os seus comentadores a dizer que os Afegãos não quiseram organizar-se, que o povo que está perante o iminente terror de se ver privado de qualquer liberdade, qualquer direito e esmagado pela força das mais fortes punições não se defende, não se levanta contra os Talibãs armados. Embala-se a narrativa com um suposto desejo de que o povo queria os Talibã de volta. O povo que ficou sempre de fora dos planos das elites do Afeganistão destes 20 anos. Os Talibãs que não se submeteram a eleições e chegam em ofensivas armadas, talvez isto não combine com a narrativa ocidental, afinal.

 

A narrativa do poder ocidental até já conseguiu seguir a linha da culpabilização dos Afegãos por ter investido milhões num país cujo governo nem conseguiu defender as suas cidades.

 

Os Talibãs, 20 anos depois, dizem que sabem o que são direitos humanos, que as mulheres podem estudar, que as mulheres podem trabalhar. Mas nenhum ocidental finge acreditar.

 

Os Talibã, com as suas facturas para pagar à Al Qaeda e ao Daesh, têm o seu Emirado.

 

Os afegãos aterrorizados estão deslocados aos milhares, tentam sair do país. Mas a 10 de Agosto, com as fugas e deslocados em massa, com o terror talibã em marcha, ficávamos a saber que 6 países Europeus (Áustria, Países Baixos, Alemanha, Dinamarca, Bélgica e Grécia) escreveram a Bruxelas sobre a urgência de manter as deportações de Afegãos. Segundo estes países não o fazer era dar um sinal verde aos Afegãos que agora fogem do terror talibã. Esta é parte da hipocrisia da solidariedade europeia que financia a Turquia para lidar com o que não quer ver.

 

Este ano 1200 afegãos foram devolvidos ao Irão, sem que alguém se tivesse preocupado se íam para lugar seguro. 200 embarcaram contra a sua vontade e ninguém deve saber onde estão. Perante o terror anunciado de um estado Talibã imposto, seis de nós (Estados Membros) correm a lembrar que o melhor é dizer já que os direitos humanos no Afeganistão não são assunto nosso, que a Europa (com baixíssimas taxas de natalidade e reduzida população activa) é dos Europeus.

 

É esta particular solidariedade que faz com que convivamos bem com o facto de nos países mais pobres não haver ainda 10% da população vacinada.

 

Não podemos fazer belas campanhas pelos Direitos Humanos, colocar a erradicação do Tráfico de Seres Humanos na nossa agenda global e permitir que os mais vulneráveis dos vulneráveis, deslocados, mulheres e crianças em fuga, fiquem abandonados à sua sorte.

 

Os Direitos Humanos não têm fronteira, não podem ser um factor de lucro ou de votos, não prescrevem nem são usucapidos.

 

20 anos é muito tempo, 20 anos perdidos é muito mais, mas nenhum prazo está esgotado quando se abandonam vulneráveis.

 

 

Autora: Maria L. Duarte I Comissão de Direitos Humanos da JALP.